A escritora americana Jacqueline Woodson já havia publicado mais de 30 livros para jovens leitores e ganhado vários prêmios (com destaque para Memorial Astrid Lindgren, de 2018) quando mudou o rumo para uma escrita mais adulta. Primeiro com o impactante Um Outro Brooklyn, lançado em 2016 e que agora chega ao Brasil, pela editora Todavia. Depois, com Red at the Bone, que também ganhará uma edição em português, em 2021.

 

Independentemente da faixa etária de seu leitor-alvo, Jacqueline mantém uma coerência, pois todos seus livros colocam crianças e adolescentes negros no centro da trama – sem condescendência, mas posicionados em situações realistas e com uma profunda compreensão da psique de seus personagens. Outra constante é o fascínio pelo Brooklyn, bairro de Nova York onde ela foi morar nos anos 1970. Ela cresceu em Bushwick, região que, na época, era ocupada principalmente por negros e latinos.

 

O passar do tempo, porém, foi dolorido. “O quarteirão em que cresci agora é predominantemente branco”, afirma ela que, não à toa, na dedicatória de Um Outro Brooklyn anotou: “Para Bushwick (1970-90). Em Memória”. Discreto lamento pela descaracterização da região, valorizada pela chegada de grandes investimentos que “esbranquiçaram” o bairro, a ponto de Jacqueline ter dificuldade em alugar um apartamento nos anos 1990 – os proprietários evitavam fazer negócios com estranhos, mães solteiras e negros.

 

Essa “invisibilidade social” está presente em seus romances, que Jacqueline utiliza como uma forma de busca por si mesma. No livro agora editado no Brasil, Augusta é uma antropóloga que volta para casa para o enterro do pai – sua pesquisa acadêmica foca justamente rituais funerários de várias culturas, uma forma de desvendar o mistério do luto e a dor da perda. Ao reencontrar Sylvia, amiga de longa data, Augusta volta aos anos 1970, quando chegou ainda menina ao Brooklyn, um lugar onde garotas como ela podiam sonhar com um futuro acolhedor. Sobre o livro, Jacqueline que também é ilustradora, respondeu por e-mail às seguintes questões.

 

Nossas vidas agora dependem de ficar em casa e não fazer nada. A quarentena está sendo produtiva em relação ao seu trabalho como escritora?

 

Enquanto escrevo (início de abril), entramos na quarta semana de quarentena. Como tudo está no ar de muitas maneiras, é difícil me concentrar no trabalho criativo. Minha companheira é médica em Nova York, nos mudamos para o campo para fugir das multidões e de todos os muitos lembretes da pandemia – embora não haja realmente nenhuma maneira de escapar dela aqui. Meus filhos estão aqui comigo. Em “tempos normais”, escrevo quando ela sai para o trabalho e as crianças vão para a escola. Mas esses não são tempos normais. Escrevo algumas frases e continuo tentando pensar em vários projetos ao mesmo tempo. Não me sinto muito produtiva, mas a escrita me faz continuar a viver e pensar.

 

Você é um daqueles escritores raros que escreve para todas as faixas etárias. Como e quando você decide para qual faixa etária está escrevendo?

 

Os livros me escolhem. Eu nunca decidi escrever para um público em particular e, às vezes, nem faço ideia de qual será o público-alvo até o processo de escrita avançar bastante. Os livros ilustrados parecem mais como poemas para mim. A ficção adulta permite que o leitor me encontre no meio do caminho com suas próprias experiências e a literatura juvenil me permite pensar e brincar. Normalmente, estou trabalhando em mais de um gênero a cada vez.

 

Quão biográfico é Um Outro Brooklyn? Qual o papel da experiência pessoal em termos de inspiração?

 

Sempre digo que meus livros são mais psicologicamente autobiográficos do que pelos fatos em si. Toda emoção que meus personagens sentem é a mesma que senti em algum momento. Muito do meu passado ressoa comigo – tanto os momentos bons como os ruins. Então, é isso que trago para a narrativa. Obviamente, existem elementos que estão diretamente fora da experiência física – Nação do Islã (grupo político e religioso surgido nos EUA nos anos 1930 e que pregava a conscientização da população afro-americana), Bushwick, ter boas amigas. Mas a maioria das experiências em Um Outro Brooklyn é imaginada e/ou inspirada pelo mundo que me rodeia.

 

Por que o romance se chama Um Outro Brooklyn? Quero dizer, existe um primeiro?

 

Inspirado por Terra Estranha, de James Baldwin, e Brooklyn, de Colm Toíbín, o romance se propõe a contar uma história diferente sobre um lugar que as pessoas sentem que conhecem. Também representa a percepção de pessoas que desejam encontrar uma saída.

 

No início, Augusta diz: “Agora sei que trágico não é o momento. É a memória”. Existe uma trama para a tragédia que não está completa até que a tragédia seja repetida na memória e entendida como uma?

 

Boa pergunta. Não sei se posso falar definitivamente sobre como a memória e a experiência funcionam juntas para todos. Para mim, como escritora, a narrativa é sempre sobre olhar algo profunda e frequentemente, olhar para trás em relação a algo.

 

Você se vê como uma escritora política ou sente que os escritores são criaturas inevitavelmente políticas?

 

Sou uma escritora que é política. Eu nem sempre concordo com os qualificadores aparecerem antes da arte.

 

Qual a importância da perspectiva do narrador? Existe conexão entre perspectiva e verdade?

 

Augusta é um narrador não confiável. Eu acho que isso é importante para essa história em particular por causa de tudo o que acontece nela. Não posso falar por todos os narradores de todas as histórias.

 

Red at the Bone contém referências a diferentes tipos e épocas de música. Como é o uso da música no livro e a força de conexão que ela representa?

 

A música tem um papel importante em todos os meus livros. Ouço enquanto escrevo e a música que escuto tende a coincidir com o período em que escrevo. Como o livro abrange uma extensão de tempo tão longa, eu queria que a música fosse representada, então você tem de tudo, desde jazz e blues até o hip hop contemporâneo, entrelaçado na narrativa.

 

Fonte: Exame


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