O conde que virou wai-mahsu
Coletânea recém-lançada “A Única Vida Possível – Itinerários de Ermanno Stradelli na Amazônia” supera biografia de Câmara Cascudo e torna-se a mais completa obra já publicada sobre italiano que abandonou a nobreza para se aventurar pelas selvas brasileiras, tornando-se um dos maiores divulgadores da cultura indígena no mundo
Quantas vidas cabem em uma existência? No caso do conde italiano Ermanno Stradelli (1852 – 1926), apenas uma: a de sua ligação profunda com a Amazônia. Personagem multifacetado de aventuras pelas selvas do norte brasileiro, ele foi aristocrata, explorador, etnógrafo, antropólogo, tradutor, linguista, fotógrafo, jurista e muito, mas muito apaixonado pelo o que fazia. Aos 27 anos, abandonou sua vida na nobreza em Piacenza, norte da Itália, para se embrenhar pela floresta amazônica na América do Sul. Após uma longa temporada de expedições fluviais e terrestres, passou por uma fase mais sedentária, como promotor de justiça em Tefé, para concluir sua vida, já idodo, no leprosário de Umirizal em Manaus. Apesar do fim trágico, seus anos de pesquisa na região fizeram de Stradelli um dos pioneiros no estudo e na divulgação das culturas indígenas do Alto Rio Negro, sendo, até hoje, referência para estudiosos de diversas áreas
Nos 90 anos da morte desta figura emblemática, o Istituto Italiano di Cultura de São Paulo, em parceria com a editora Unesp, lançam a coletânea de ensaios inéditos A Única Vida Possível – Itinerários de Ermanno Stradelli na Amazônia. Organizado pela pesquisadora de sua vida e obra Livia Raponi, o livro reúne diversas perspectivas diante do perfil eclético de um único nome: os dez autores da publicação trazem informações preciosas sobre cada uma de suas atuações, seja como explorador de rios e matas, etnógrafo, poeta, dicionarista, tradutor do nheengatu, ou ainda como “branco wai-mahsu” – aquele que, segundo a cosmologia tucano, é um espírito que adquire forma humana para visitar locais sagrados, ter diversos tipos de contatos com a natureza e trocar riquezas (ouro e diamante). Assim, conseguem compor a história de um único homem, de um único mito.
Segundo a organizadora, a diversidade dos olhares trazidos por especialistas brasileiros e italianos constitui um ponto forte do livro. “Acredito que justamente esta heterogeneidade possibilite um retrato pluridimensional, e por isso, mais consistente e plausível do personagem. A figura de Stradelli, distante 80 anos da biografia realizada por Câmara Cascudo, adquire novos contornos. Além disso, a excepcionalidade de sua trajetória, brilhantemente colhida pelo etnólogo, é confirmada”, afirma Livia.
Por valorizar as novidades de sua pesquisa historiográfica, ao mesmo tempo em que realça a dimensão literária e etnográfica do trabalho do conde italiano, a coletânea consagra-se como o estudo mais completo já publicado sobre a vida e obra de Ermanno Stradelli.
O leitor encontrará nas 256 páginas do livro uma descrição vívida dos aspectos e momentos mais significativos da aventura humana e profissional de Stradelli na Amazônia: sua habilidade de dicionarista, sua ocupação de colecionador de artefatos indígenas, seu trabalho de tradução e divulgação da lenda do Jurupari (mito fundamental ameríndio), sua vida de promotor público e também as mais diversas dificuldades pelas quais passou, ao longo de 45 anos vividos no norte do Brasil.
Acompanhada por uma cronologia acurada e um estudo dos itinerários percorridos pelo viajante, a coletânea conta também com um rico caderno fotográfico que reúne imagens realizadas pelo próprio Stradelli entre 1880 e 1899. Há fotografias de portos, de viagens fluviais com diferentes tipos de embarcações, de famílias brasileiras, de índios com vestimentas de “homem branco”, de indígenas perto de suas malocas e, como altíssimo valor documental, o registro dos primeiros contatos entre expedicionários brancos e os indômitos crichanás (waimiri-atroari). Uma imagem, em particular, retrata o momento em que o cientista João Barbosa Rodrigues ensina aos índios “como acender um fósforo”.
Graças à sua familiaridade com os aparelhos tecnológicos – a máquina fotográfica, o microscópio e o teodolito -, que eram vistos como inusitados para os nativos, e também ao seu interesse pelas virtudes medicinais das plantas, Stradelli foi declarado como um xamã pelos indígenas, que o admiravam. De sua parte, o conde-aventureiro sempre manteve uma atitude muito respeitosa com os índios, sem nunca considera-los não civilizados ou inferiores.
“É singular para a época, a capacidade de Stradelli de reconhecer a sofisticação e a riqueza dos saberes dos povos indígenas, definidos então como bárbaros ou primitivos. De modo antecipador, ele considerou as expressões materiais e imateriais das culturas ameríndias como patrimônio de toda a humanidade, e a partir disso, deu forma à sua missão pessoal de ir a seu encalço, inventariá-las e divulgá-las”, destaca a pesquisadora Livia.
Seu carisma e a fluência em nheengatu foram fundamentais para que o aristocrata italiano não só se mantivesse cada vez mais próximo de várias tribos, como ainda desempenhasse, em várias ocasiões, o delicado papel de mediador entre brancos e índios, como em 1884, na expedição de “pacificação” dos indômitos crichanás, ao lado do botânico João Barbosa Rodrigues.
Fonte: Agência Cerne de Comunicação
Obs: As informações acima são de total responsabilidade da Fonte declarada. Não foram produzidas pelo Instituto Pinheiro, e estão publicadas apenas para o conhecimento do público. Não nos responsabilizamos pelo mau uso das informações aqui contidas.