Em tempos de pandemia, conto de horror publicado em 1842 voltou a frequentar cabeceiras pelo mundo. E tem muito a dizer sobre nós mesmos. Saiba mais na coluna de Oscar Nestarez

 

Lá fora, a peste; aqui dentro, a loucura.

 

Em certa medida, essa formulação resume A máscara da morte rubra, conto de Edgar Allan Poe publicado pela primeira vez em maio de 1842, cujo enredo aborda o desvario diante de uma epidemia. De acordo com biógrafos, Poe inspirou-se no relato de um conterrâneo, o também escritor Nathaniel Parker Willis, que teria participado de um “baile de cólera” em Paris. Com efeito, o contexto do conto é o surto de cólera que atacou a Europa — mais especificamente a França — na primeira metade do século 19.

 

Na história de Poe, enquanto a chamada “morte rubra” devasta a região, o destemido príncipe Próspero decide reunir e trancar, em uma abadia fortificada, mil amigos escolhidos entre os cavaleiros e as damas de sua corte. Após alguns meses de confinamento, quando a pestilência atinge o ápice do lado de fora da abadia, o príncipe acha por bem oferecer um baile de máscaras “da magnificência mais extraordinária”. A história se detém nessa festa, que, em certo momento, receberá um assustador intruso.

 

Em tempos de pandemia, o conto de Poe voltou à cabeceira de muita gente. Neste texto publicado recentemente na Folha de S. Paulo, a escritora e ensaísta Dirce Waltrick do Amarante compara o baile de Próspero à atitude de certos governantes — alguns deles, inclusive, declarando-se atletas. Em uma leitura perspicaz, Amarante aproxima o delírio coletivo conduzido pelo príncipe de Poe à postura de líderes que não apenas parecem ignorar a gravidade da situação, como agem de forma diametralmente oposta às recomendações de profissionais de saúde.

 

Pesadelos íntimos e coletivos

 

Neste espaço, porém, procuraremos situar o conto fora do espectro político. A ideia aqui é verificar como o relato de Poe cristaliza um comportamento humano recorrente diante das catástrofes de enormes proporções: o desregramento e a loucura.

 

Quem revela essa recorrência é o historiador francês Jean Delumeau (1923 – 2020), autor de História do medo no Ocidente, monumental ensaio publicado originalmente em 1978. O estudo de Delumeau abrange o período que vai dos séculos 14 ao 18, e investiga os pesadelos — tanto íntimos quanto coletivos — que assolaram a civilização ocidental ao longo desse tempo, muitos dos quais persistem até hoje.

 

No capítulo dedicado às pestes, o historiador lembra que, frente ao avanço das epidemias que aniquilaram boa parte da população europeia, eram “Frequentes […] as bebedeiras e os desregramentos inspirados pelo desejo frenético de aproveitar os últimos momentos de vida. Era o carpe diem vivido com uma intensidade exacerbada pela iminência quase certa de um horrível trespasse”.

 

A propósito, a descrição de Delumeau sobre os efeitos das pestes nas cidades medievais assombra pela forma como reverbera em tempos de Covid-19: “Evita-se abrir as janelas da casa e descer à rua. As pessoas esforçam-se em resistir, fechadas em casa, com reservas que se pôde acumular. Se assim mesmo é preciso sair para se comprar o indispensável, impõem-se precauções. Fregueses e vendedores de artigos de primeira necessidade só se cumprimentam a distância e colocam entre si o espaço de um largo balcão”.

 

Cenografia do horror

 

De certa forma, isso é o que fazem Próspero e seus mil amigos “sãos e despreocupados”: exilam-se do mundo, confinados na fortaleza do príncipe. Mas logo se mostram desvairados. Afinal, todas as providências foram tomadas para que eles se divirtam ao máximo possível. Dentro da abadia, há bufões, atores, dançarinos, músicos, vinho… “Tudo isso, mais a segurança. Lá fora, a ‘Morte Rubra’”.

 

A propósito, os espaços têm papel central na narrativa. Mais especificamente os sete salões onde ocorre o baile. Exímio cenógrafo do horror que era, Poe cuidou de todos os detalhes, da iluminação (em cada salão predomina uma cor) à tapeçaria e às cortinas, para acentuar o arrepio — depois transformado em horror e aversão — causado pela chegada de uma certa figura mascarada.

 

A sonoridade também se destaca na composição do conto. Durante toda a narrativa, soa o gigantesco relógio de ébano localizado no último salão, em que predominam a cor negra e no qual poucos ousam entrar. Os badalos macabros ditam o ritmo da narrativa. Trovejando de hora em hora, o relógio cala, por alguns momentos, a música e o vozerio do baile, lembrando os convivas de que a morte anda à espreita; senão pela peste, por Cronos, que a tudo devora.

 

Conjugada com a ambiência sinistra, a sonoplastia de Poe se prova imensamente eficaz. Os badalos intensificam o suspense e preparam o terreno para o confronto final entre Próspero e a figura “alta e descarnada, e amortalhada da cabeça aos pés nas roupagens do túmulo” que de repente surge no baile. O embate se dá no exato momento em que o relógio soa a meia-noite.

 

Shakespeare e arrogância

 

Cabe apontarmos, também, a influência de William Shakespeare em A máscara da morte rubra. Mais especificamente da peça A tempestade (1610-1611), cujo protagonista, o duque Próspero, empenha-se para arranjar o futuro da própria filha, Miranda, e vingar-se de antigos inimigos. Seus maiores triunfos são a ilusão e a manipulação; assim sendo, não parece fortuito que Poe tenha escolhido tal nome para batizar seu ardiloso príncipe.

 

Outro eco perceptível no conto vem da antiguidade clássica. Referimo-nos ao conceito de húbris, termo grego que hoje pode ser traduzido como “passar dos limites”, ou mesmo “arrogância”. Na mitologia e nas tragédias gregas, são inúmeros os exemplos de figuras que demonstraram confiança ou orgulho excessivos, e por isso despertaram a ira dos deuses. Ulisses, Édipo e Prometeu talvez sejam os mais conhecidos. Da mesma forma, a arrogância do príncipe Próspero não passará em branco.

 

Unidade de impressão

 

Encontramos tudo isso dentro de um dos contos mais curtos de Edgar Allan Poe. Aqui, o autor segue à risca um de seus mais consagrados ensinamentos, a respeito da brevidade do texto. Afirma Poe no famoso ensaio A filosofia da composição (1846): “Se qualquer obra literária for longa demais para ser lida em apenas uma sentada, deve-se aceitar que se dispersará o imensamente importante efeito derivado da unidade de impressão — porque, se forem exigidas duas sentadas, as coisas do mundo vão interferir, e a totalidade será imediatamente destruída.”

 

O texto se refere à composição de O corvo e funciona como uma espécie de manual de montagem do mais famoso poema de Poe. Mas essas orientações também podem se aplicar a grande parte da prosa do autor, sobretudo de horror. No caso de A máscara da morte rubra, a narrativa não apenas obedece à risca a regra da extensão, como propõe que o leitor realize a leitura no ritmo vertiginoso das badaladas do relógio, rumo ao terrível desfecho.

 

Atmosférico, conciso e macabro, A máscara da morte rubra sempre foi considerado um dos melhores contos de horror de Edgar Allan Poe. Agora, em tempos de pandemia, a leitura ganha nova e maior dimensão, à medida em que revela os absurdos da natureza humana — de hoje e sempre — frente a ameaças de grandes proporções. Mas não interessa a Poe nos dar lições; é seu intuito trazer o desvario à tona, para que o contemplemos em toda a sua “magnificência mais extraordinária”. De preferência, na segurança de nossas casas; e a dois metros do ser humano mais próximo.

 

*Oscar Nestarez é autor e pesquisador da literatura de horror. Publicou “Poe e Lovecraft: Um Ensaio Sobre o Medo na Literatura” (Livrus), a coletânea de contos “Horror adentro” (Kazuá) e o romance “Bile negra” (Pyro), que recebeu o prêmio de melhor narrativa longa de horror da Associação Brasileira de Escritores de Romance Policial, Suspense e Terror (ABERST).

 

Fonte: Revista Galileu


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