Dirigida por Lucas Lacerda — que recentemente esteve como ator nos espetáculos “A Mentira”, “Os Javalis” e “Nem Mesmo Todo Oceano” — a montagem busca refletir sobre os dilemas internos do ser humano proporcionados pelo espectro da morte e da culpa. Em cena, Joana Kannenberg e Júlia Portesvivem, respectivamente, Francini e Marta, protagonistas de uma história marcada pelo abandono e pelo rancor.
Ainda crianças, elas tornaram-se amigas e, ao longo dos anos, partilharam descobertas e experiências da juventude. Elas não se veem desde que Francini mudou-se para a cidade grande em busca em uma nova vida. O reencontro no funeral de sua avó será marcado por um confronto ético e moral, cheio de ressentimento, intolerância e expectativa.
A dramaturgia foi construída a oito mãos pelo diretor Lucas Lacerda, pelas atrizes Joana Kannenberg e Júlia Portes e pela roteirista Denise Portes, mãe de Júlia, durante o processo de criação da montagem, livremente inspirada em uma história real. Há dois anos, Denise decidiu pintar o túmulo da mãe, falecida em 2016, num encontro familiar repleto de risos, cores e lembranças para celebrar a vida. “Por que uma mulher tão criativa como a minha avó ficaria enterrada num lugar todo cinza”, questiona Júlia Portes.
“Na nossa sociedade, a morte está relacionada ao luto, ao choro e à tristeza. Tanto na peça quanto na vida real, a ideia é romper com as estruturas tradicionais e celebrar com alegria a passagem de uma pessoa muito querida e tudo o que ela nos deixou”, compara.
“Felizes Mortos” propõe um olhar reflexivo sobre nossos comportamentos face à morte e como a construção social de uma pessoa por meio do viés religioso define os parâmetros éticos de muitos brasileiros. “Buscamos analisar o papel que a morte ocupa em nossa sociedade e como o fim é considerado moralmente prematuro quando se trata de uma decisão”, explica do diretor Lucas Lacerda.
“Carregamos culpas e feridas que nos afastam de nossa essência. Por meio do contato com a morte e do conflito as duas personagens, elas refletem sobre suas próprias escolhas e repensam sobre como querem levar a vida dali em diante”, completa o diretor.
A peça questiona também as relações familiares e laços sanguíneos em tempos de polarização ideológica em que influências externas da sociedade afetam nossos encontros, escolhas e comportamentos que nos distanciam de nosso próprio desejo. Quais são os entraves que a sociedade cria dentro do próprio corpo e sobre a percepção de nossa sexualidade? Essas são algumas das questões debatidas na dramaturgia de “Felizes Mortos”.
“Muitos assuntos nos atravessam. Eu mesma vim do interior do Rio Grande do Sul e deixei minha família para trás. Sempre existe um questionamento do que eu poderia estar perdendo estando aqui, atrás do que eu vim fazer. Quando as coisas ganham ou perdem sentido?”, questiona Joana Kannenberg. “O Olhar para a morte faz a gente rever nossa vida e refletir sobre tudo isso”, acredita.
A encenação valoriza a força do texto e o trabalho das atrizes como principais motores da montagem. O cenário não realista de José Dias cria códigos que remetem a elementos essenciais da peça, que ao longo da trama ganham novos significados. A trilha sonora original de Natália Oliveira, composta especialmente para o espetáculo, marca e representa as passagens de tempo de “Felizes Mortos”, assim como a luz de Gabriel Prieto fortalece a dramaturgia e insere o público dentro da cena.