Raul Mourão. Swing Barra #12 (2022). Aço corten. 109 x 120 x 60 cm ©LURIXS
A Lurixs: arte contemporânea tem o prazer de anunciar Abre o jogo, nova exposição individual de Raul Mourão, que conta com texto crítico de Luisa Duarte. A presente mostra celebra os 20 anos da galeria e reúne mais de 60 obras do artista, de diferentes séries de sua produção multimídia.
Influenciado pelas paisagens e personagens das cidades, o artista produz a partir de análises de seu dia a dia, apresentando obras que transitam entre o documental e a ficção. Inventivo, Mourão apresenta um vocabulário plástico com elementos da visualidade urbana deslocados de seu contexto usual. O resultado são esculturas, pinturas, desenhos, vídeos, fotografias, instalações e performances. O título da exposição carrega consigo não somente o humor de uma expressão coloquial, que representa a abertura do ateliê e de sua lógica desordenada para o público, mas um caráter investigativo, quase policial, de contar tudo o que se sabe. Abre o jogo visa mostrar em exposição a intimidade e a diversidade de seu ateliê, que não são exibidas usualmente, e dar uma maior dimensão aos seus processos, experiências e projetos.
Abre o jogo- Luisa Duarte
A presente exposição é o terceiro ato de uma tríade cujo início se deu com “O menor carnaval do mundo”, em Salvador, passou por “Evite acidentes”, em Belo Horizonte, para então chegar ao Rio de Janeiro, na Galeria Lurixs, onde Raul Mourão realiza “Abre o jogo”. Em comum, nas três mostras o artista fez do espaço das galerias uma espécie de prolongamento do seu ateliê. Mas tal prolongamento não significa o mero ato de reproduzir o espaço de trabalho no cubo branco, mas sim de compartilhar a (abrir o jogo da) dinâmica de aproximações e diálogos entre diferentes obras tal como ocorre no cotidiano do seu estúdio.
Se concordamos que a rua é onde tudo começa na obra de Mourão, fica nítido em “Abre o jogo” que a aliança com o que é da cidade, do alarido, da dimensão pública não se opõe, mas, ao contrário, acolhe o que é da ordem do introspectivo, da delicadeza, do que fala mais baixo. No jogo de Mourão, o grande e o pequeno, o rápido e o lento, o pesado e o leve, o forte e o frágil caminham juntos.
Um exemplo desse trânsito se dá em The new brazilian flag (2019), em que o artista faz um único e certeiro gesto através do qual retira da bandeira do Brasil o seu círculo central e assim subtrai o lema positivista – ordem e progresso. Criado em meio aos últimos anos sombrios que assolaram o país, o trabalho se apropria de um segmento de tecido que traz consigo o emblema de uma nação e, com um corte seco, dá a ver simultaneamente o abismo no qual entramos, a precariedade que nos cerca e a chance de nos reinventarmos, afinal o oco que agora ocupa o centro da bandeira pode vir a ganhar novos e inauditos dizeres. Ao longo do tempo, esse trabalho ganhou diversos modos de aparição no mundo – como múltiplo, como fotografia, como intervenção pública. A repetição de um mesmo procedimento em diferentes linguagens e escalas é uma marca da produção de Mourão. Estamos aqui distantes do fetiche que envolve a aura da obra de arte e mais próximos do fazer característico da cultura pop com seus diferentes níveis de reprodutibilidade e disseminação.
A persistência de um mesmo motivo, e sua variação em vários meios, pode ser vista na série SETADERUA, iniciada no remoto ano de 1989. Em “Abre o jogo”, esta comparece em pinturas de diferentes tamanhos e também como fotografia. Aqui, o signo visual próprio do tecido urbano tem a sua utilidade desfeita em nome de uma constante reelaboração formal. Se nas cidades as setas servem para orientar, nos trabalhos de Mourão o que vemos são antes desvios poéticos que miram grafismos, composições e jogos cromáticos em uma sucessão prolífica que conduz à lembrança de diferentes artistas, de Daniel Buren a Raymundo Collares, de Waldemar Cordeiro a Judith Lauand. Vale notar como, nas pinturas sobre tela, não há qualquer vestígio manual, como se o dado de anonimato característico das ruas tomasse conta do ato pictórico. Esse caráter maquínico, por sua vez, doa aos trabalhos um senso de ordenamento que contrasta com a imprevisibilidade característica do espaço público que nos rodeia.
O convívio entre opostos prossegue nas esculturas cinéticas de aço corten. Nas peças de grande escala, surpreende a conjunção entre peso e leveza – a rigidez do material ganha maleabilidade através do movimento. Movimento que requer atenção de quem toca. Nas palavras de Eucanaã Ferraz: “O aço balança, brinca, responde, o que era inflexível convida para a dança. Mas é preciso cuidado porque é leve, porque é frágil; porque é grande, porque é pesado.” Ao solicitar que meçamos o quanto de força empreendemos a cada vez que as tocamos, Mourão introduz um tanto de delicadeza e proximidade diante de obras que poderiam suscitar antes inibição e distância. E a torção prossegue quando o artista reduz a escala e coloca as esculturas em diálogo com objetos já existentes no mundo, como por exemplo garrafas de vidro ou vasos de barro. Em um equilíbrio tênue se encontram a forma geométrica impenetrável e o frágil índice da vida mundana atravessado por seus diferentes usos.
Certa vez foi observado que o fato destas esculturas terem como origem desenhos do artista poderia contribuir para a leveza que nelas enxergamos. Ou seja, na gênese dessas obras se encontra um traço ensaístico, amigo do risco, do acaso, pousado sobre a fina folha de papel. Papel que está impregnado na produção de Mourão desde sempre e comparece em “Abre o jogo” na série Janelas. Se na sua obra nada é fatoisolado, pois tudo se interliga, comunica, conversa, atrita, toca, roça, quer trocar ideia, com as Janelas não é diferente. Estas são desdobramentos dos seus trabalhos em torno da grade. Enquanto as esculturas de ferro apresentavam uma “geometria do medo em contexto histórico preciso”, iii essas espécies de monotipias instauram um outro deslocamento da forma geométrica. Aqui, a tinta acrílica preta decalca grids que forjam janelas capazes de descortinar uma multiplicidade de paisagens gráficas. Parecidas visualmente, são sempre diferentes. No lugar da totalidade esperada do grid, entra em cena a singularidade que escapa às totalizações.
O título da presente exposição, “Abre o jogo”, remete à ideia de compartilhar com o público o que costuma estar circunscrito ao ateliê. As obras até agora citadas já foram exibidas anteriormente, outras tantas se juntam a esse grupo, mas o que mais importa é o modo como estão apresentadas e suas vizinhanças no espaço. Ao reunir um conjunto vasto da sua produção com vias a estabelecer novos diálogos e ao refazer situações que vemos no ateliê, como por exemplo a mesa povoada por vários pequenos trabalhos, Mourão reafirma um dos métodos mais caros ao seu programa poético, aquele que pensa cada obra não como uma unidade isolada, mas sempre em relação com as demais. Não parece forçado pensar que essa forma de conceber o seu fazer artístico se expande para uma atuação na cena cultural que está sempre ativando colaborações.
Nesse sentido, Relixo (2021) iv condensa muito do que está em jogo em “Abre o jogo”. Feito em parceria com Thiago Tambellini, o vídeo apresenta fragmentos de imagens em movimento captadas por Mourão em celulares e câmeras portáteis ao longo dos últimos dez anos. Sabemos como as imagens da era digital guardam consigo um paradoxo: estão armazenadas para sempre nas nuvens de bytes, mas dificilmente serão reencontradas. O artista reverte o destino que as relega ao esquecimento, revira o lixo e o edita em uma colagem que deslinda a natureza do seu olhar: aquela a um só tempo atenta e generosa diante das mais diferentes experiências – a dança na Lapa, a rosa que balança com a brisa, o futebol das crianças, as esculturas em meio à natureza, o filho jogando video game, os amigos retratados em pinturas, o canteiro em obras, o paletó nu em plena rua, a moça que canta no metrô de Nova York etc. Ao visitar o passado a fim de desenhar o porvir, ao desfazer hierarquias, ao juntar o que pertence à esfera pública e o que nos fala daquela esfera doméstica, ao congregar ruído e murmúrio e, assim, instaurar aproximações inauditas, Relixo emula a operação realizada na exposição como um todo.
Ao abrir o seu jogo, o artista nos endereça um acontecimento que, sem se valer de qualquer gesto literal, se coloca nas antípodas de uma época marcada pelo desejo regressivo de separação, de união pelas similaridades e rejeição às diferenças. As vizinhanças entre opostos instauradas por Raul Mourão ao longo de toda a sua produção nos recordam que é na incômoda e conflituosa, prazerosa e sedutora proximidade – e não na segura e asséptica distância – que podemos, enfim, despertar para a beleza insuspeitada do que nos rodeia.
i – “O menor carnaval do mundo” inaugurou em novembro de 2021, na Galeria Roberto Alban, em Salvador, com texto de Clarissa Diniz; “Evite acidentes” teve a sua abertura em junho de 2022, na Galeria Celma Albuquerque, em Belo Horizonte, com curadoria e texto de Eucanaã Ferraz.
ii – Ver texto de Eucanaã Ferraz para a mostra “Evite acidentes”: https://www.raulmourao.com/exhibitions/evite-acidentes/view/.
iii – Ver “A gentil arte de burlar”, de Paulo Herkenhoff. Publicado em Raul Mourão, Coleção ARTE BRA (Casa da Palavra e Automatica Edições, 2007).
iv – Relixo tem duração de 24’19’’ e conta com trilha de Nado Leal.
Sobre o artista
Nascido no Rio de Janeiro, em 1967, Raul Mourão cria esculturas, pinturas, fotografias, vídeos, instalações e performances desde o final da década de 1980. Construídas com diversos materiais, suas obras transitam entre dois campos opostos: o ficcional e o documental. De um lado, estão as criações puras, concebidas a partir da fantasia; do outro, estão as obras nascidas das observações do real – a cidade, o futebol, a política ou os botequins.
Mourão ingressa na Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage em meados dos anos 1980. À época, o artista faz os primeiros registros fotográficos de um elemento urbano que seria mote de sua pesquisa nas décadas seguintes: as grades usadas para proteção, segurança e isolamento em ruas do Rio de Janeiro. Dos registros, surge a série Grades,
sobre a paisagem urbana, que desemboca em trabalhos até os dias atuais.
Nos anos 2000, sua pesquisa toma novo caminho, o das esculturas cinéticas. Mourão passa a criar estruturas que podem ser acionadas pelo toque do espectador. As obras são exibidas em exposições individuais em instituições como o Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro e o Bronx Museum, em Nova York, além de galerias em São Paulo, Rio e Salvador. Os trabalhos também integram coletivas no Canadá, em Portugal, nos Estados Unidos e na Inglaterra.
Em 2013, o artista passa a viver em Nova York, onde realiza desenhos, fotos e videos, além de iniciar a série Janela/Window, de pinturas e esculturas cinéticas em aço corten. A nova série dá origem à exposição individual Fenestra, realizada na Lurixs em 2015.
Mourão também atua como curador e produtor de exposições, além de ter trabalhado na fundação e direção da galeria e produtora Agora, que funcionou na Lapa, nos anos 2000. Como editor, participa da criação das revistas O Carioca, Item e Jacaranda. Tem publicados os livros ARTEBRA (Casa da Palavra, 2005), MOV (Automatica, 2011) e Volume 1 (Automatica, 2015).
Serviço:
- RAUL MOURÃO ABRE O JOGO
- Abertura: Quinta-feira 15 de dezembro, das 18h às 21h
- Exposição: 16 de dezembro a 17 de fevereiro de 2023
Local
- LURIXS: Arte Contemporânea
- Rua Dias Ferreira, 214 – Leblon – Rio de Janeiro, Brasil – 22431-010
- www.lurixs.com
- www.facebook.com/lurixs
- @lurixs
- Horário: De segunda à sexta: das 11h às 19h – Sábados sob agendamento
- Entrada franca