Em entrevista à GALILEU, o geólogo Andrés Ruzo conta sua trajetória até o maior rio geotérmico do mundo e como ele permaneceu como uma lenda por tanto tempo
Nem todo mundo tem o privilégio de ver as histórias contadas pelos avós virando realidade, mas foi o que aconteceu com o geólogo peruano Andrés Ruzo, doutorando da Universidade Metodista do Sul, no Texas, Estados Unidos. Quando era pequeno, um de seus passatempos era ouvir lendas do povo inca contadas por seu avô, um pesquisador de culturas indígenas. Uma delas falava sobre a existência de um “rio fervilhante” no meio da Amazônia.
A história cativou o cientista que, sendo um especialista em energia geotérmica, retornou ao Peru depois de anos vivendo na Nicarágua e nos Estados Unidos para descobrir se o rio existia mesmo.
O que Ruzo não imaginava era que encontraria o maior curso de águas quentes do mundo. O rio Shanay-timpishka, que em língua indígena significa “fervido com o calor do sol”, se estende por mais de 6,4 quilômetros e, ainda assim, nunca havia sido objeto de estudo de cientistas ou especialistas locais, sendo protegido apenas pelos povos vizinhos.
Em seu livro recém-lançado, O Rio Fervilhante: Aventuras e descobertas na Amazônia (Editora Alaúde, Coleção TED Books, 144 páginas, R$35), Ruzo narra como encontrou o local (contando com a ajuda de sua tia brasileira) e reflete sobre a importância de preservarmos as riquezas do ecossitema amazônico.
Entrevistamos o geólogo para entender como a ciência explica a existência do rio e como ela pode conversar com a cultura milenar indígena. Confira:
Como surgiu a sua conexão com o rio, que por muito tempo foi considerado apenas parte de uma lenda?
Tudo começou com as histórias que meu avô, Daniel Ruzo, me contava quando era pequeno. Uma das minhas favoritas se tratava da busca pelo Paititi [palavra do idioma indígena quéchua traduzida em espanhol como El Dorado], uma cidade perdida e mitológica de um povo que vivia no coração da Amazônia peruana. Segundo a lenda, muitos conquistadores foram atrás do local, mas nunca retornaram com sucesso. A única coisa que traziam consigo eram histórias de terror com flechas envenenadas, serpentes e tarântulas gigantes — além de aranhas que comiam pássaros. Entre esses relatos, o que mais me fascinava era a menção a um rio que fervia no meio da floresta.
Muitos anos depois, me tornei especialista em energia geotérmica nos Estados Unidos, onde vivo. Retornei ao Peru para realizar minha pesquisa do doutorado e, então, comecei a entrevistar especialistas locais sobre a existência do tal rio. Recebi muitas negativas e olhares céticos. Para os cientistas, era pouco provável que aquilo fosse mais do que uma lenda. Estava quase me conformando com as respostas até que, em um jantar na casa dos meus tios, minha tia Guida [Margarida Gonçalves, gaúcha que trabalha com povos indígenas amazônicos] insistiu que havia visto um rio fervilhante durante uma visita a um xamã. E assim começou a nossa jornada.
Como você chegou até o rio?
Foi uma longa viagem. Começamos em Lima e pegamos um avião até Pucallpa, onde partimos para a estrada de caminhonete. Levamos quatro horas até chegar a um rio, por onde navegamos por mais uma hora de peque-peque [canoa motorizada muito utilizada na Amazônia peruana]. Nos aproximamos de onde o Shanay-timpishka desemboca no Rio Pachitea, e começamos a notar a água esquentar, mas ela ainda não fervilhava.
Sinceramente, não esperava muito do rio, porque estávamos a 700 quilômetros do centro vulcânico mais próximo, e todos os rios quentes já documentados no mundo se encontravam ao lado de um vulcão — aquela era uma zona definitivamente não vulcânica. Depois de caminharmos por uma hora, começamos a ouvir o barulho do que parecia ser uma onda que se chocava incessantemente e ver alguns sinais de vapor entre as árvores. Quando vi o rio e fiz a primeira medição, o termômetro mostrou 86ºC. Para se ter uma ideia do quão quente é isso, cozinhamos nossos alimentos a partir dos 47ºC.
Qual foi sua reação ao encontrá-lo e ver que aquela lenda tão antiga tinha um fundo de verdade?
Por um lado, estava muito emocionado. Por outro, extremamente confuso sobre como aquele rio podia existir sem estar próximo de um centro vulcânico. Uma possibilidade que me assombrava era que o vulcão não era um fenômeno natural, mas o resultado de algum acidente no campo petroleiro abandonado ao seu lado. Acidentes em poços de petróleo podem, afinal, prejudicar sistemas geotérmicos, como é o caso de Lusi, um vulcão de lama que erupciona há mais de uma década na Indonésia. Teriam as lendas nascido depois disso? Acabei levando três anos de pesquisa para comprovar que não, o lugar era mesmo natural.
Inicialmente, sua proposta de doutorado incluía a elaboração de um mapa geotérmico do Peru. Como a descoberta do rio repercutiu na criação desse mapa?
O Shanay-Timpishka é o maior rio geotérmico do mundo, chegando a ter 4,5 metros de profundidade em alguns pontos, 30 metros de largura e 6,4 quilômetros de comprimento. Isso faz dele uma poderosa fonte de calor no Peru. Em uma das nossas medições, as águas de um trecho chegaram a 99,1º C! Então, ele é um elemento muito importante para o mapeamento que estamos realizando.
Por ter seu calor gerado por características e traços geotérmicos do subsolo, cada dado que obtemos sobre o rio nos ajuda a entender seus arredores, o que nos auxilia a encontrar outros lugares com potencial de se tornarem fontes geotérmicas de energia no Peru, pois precisamos de alternativas mais verdes e de outros recursos renováveis. Isso não quer dizer que o rio deva ser explorado para esse fim. De forma alguma! Ele é sagrado para os povos indígenas e deve ser preservado. Mas por meio dele podemos investigar indícios de outros sistemas geotérmicos no país que possam ser melhor aproveitados.
O que tem sido feito para preservar o Shanay-Timpishka?
Nos unimos à população local e ao governo peruano para estabelecer medidas de proteção ao rio, pois lugares como o Rio Fervilhante representam espaços onde realmente podemos catalizar nossas forças e conservar de forma rápida e efetiva. O perigo está no fato de que o rio está localizado na zona mais crítica em termos de desmatamento da Amazônia peruana, e as selvas que o cercam estão sendo rapidamente destruídas pela indústria da agropecuária.
Esse tipo de atividade, em sua maioria ilegal, põe em risco o equilíbrio do ecossistema amazônico, responsável por regular, por exemplo, o ciclo de chuvas de toda a América do Sul — com exceção do Chile, que faz parte de outro sistema. Com o avanço do desmatamento em todo o mundo, no entanto, começamos a observar um processo de savanização das florestas tropicais. Para se ter uma ideia, segundo os dados da Global Forest Watch, em 2018, perdemos 30 estádios de futebol de bosques tropicais por minuto ao redor do mundo.
Como foi para você, cientista, lidar com o misticismo que rodeia o local?
Nós, latinos, somos uma mistura de várias culturas e perspectivas de mundo — temos influências indígenas, europeias, africanas e asiáticas, e eu acho que isso é algo que ajuda muito. Trata-se de respeitar diferentes culturas. Sou cientista, mas isso não me impede de ouvir e colaborar com xamãs, que são as pessoas que cuidam desse lugar desde sempre.
De certa forma, estamos todos em busca da verdade e de entender nosso lugar no mundo. Eu busco entender a realidade pela ótica da ciência, eles buscam significados cósmicos. Se unirmos as duas perspectivas, podemos chegar a resultados interessantes, já que as explicações deles nos ajudam a conhecer sua cultura. O que importa é que todos nós estamos vendo que este rio tem valor e, juntos, podemos atrair a atenção das pessoas para discutir a preservação da Amazônia.
Fonte: Revista Revista
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