Não são poucas as informações erradas e maliciosas que circulam em torno do parto humanizado. Para muitas pessoas, essa expressão significa realizar um parto normal (via vaginal) a qualquer custo, enquanto outras pensam que é sinônimo de dar à luz em casa (isso até pode acontecer, mas não é uma prerrogativa). Pior: há quem imagine o parto humanizado como um parto desassistido. Nada mais injusto.
Então, antes de tudo, precisamos entender o que é o parto humanizado e de quais ações ele se distancia. Seu conceito surgiu no final dos anos 1980, como uma resposta à violência obstétrica sofrida pelas mulheres no auge da onda das cesarianas eletivas.
Na época, a cesárea era apresentada como a opção de parto mais segura, prática e saudável para toda uma geração de mulheres. Era o chamado “parto industrializado”: a mulher tem o direito de escolher o dia e a hora do nascimento do bebê, além de fugir de um dos maiores tabus em relação ao ato de parir. Estou falando do medo da dor.
Por essa narrativa, numa cesariana eletiva a mulher moderna, autônoma e instruída não precisaria, por óbvio, enfrentar a temida dor. Não à toa, a técnica ganhou espaço no Brasil. Hoje, nosso país é reconhecido como um dos que mais faz cesárias no mundo — só fica atrás da China.
No SUS (Sistema Único de Saúde), essa cirurgia é feita em 56% dos nascimentos, enquanto na saúde suplementar supera a inacreditável marca de 80%. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que esse número não passe de 15%.
Diante desses dados alarmantes e amplamente divulgados, é imprescindível fazer duas observações. A primeira é de que uma cesariana bem indicada salva vidas. Esse procedimento foi responsável por diminuir, e muito, a mortalidade materno-infantil no mundo.
O segundo ponto — e o outro lado dessa moeda — é que uma cesárea desnecessária faz crescer o número de mortes de mulheres e dos índices de prematuridade. O que isso quer dizer? Segundo a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), uma cesariana mal indicada triplica o risco de morte materna e aumenta em seis vezes a probabilidade de a mãe ter uma complicação grave, como retirada do útero, infecção ou necessidade de fazer uma segunda cirurgia.
O cenário brasileiro fica mais grave ao incluirmos nessa discussão a falta de estrutura nos sistemas de saúde público e privado. Um trabalho recente do CFM (Conselho Federal de Medicina) avaliou 506 hospitais e constatou que faltam, em especial nos centros cirúrgicos, equipamentos básicos para que uma operação aconteça em condições mínimas de segurança e higiene. Muitos locais carecem de geradores de energia e fontes fixas de oxigênio e oxido nitroso – fundamentais para qualquer procedimento de anestesia. Fora isso, em 3% das salas de cirurgia do país, não há área específica para a higiene das mãos.
Soma-se a isso a falta de profissionais e a redução de leitos no SUS (nos últimos 10 anos, 43 mil leitos foram extintos, segundo o Ministério da Saúde) e temos uma bomba difícil de desarmar para a garantir a boa saúde das mães e dos bebês.
Com todas essas informações nas mãos e o óbvio desinteresse do poder público de desenvolver uma medicina baseada em evidências e na promoção da saúde, chegamos ao que considero o calcanhar de Aquiles para que o parto humanizado seja estabelecido como padrão no Brasil: a inadequada formação dos profissionais de saúde de um modo geral, em especial dos médicos.
A medicina de hoje direciona seus investimentos e esforços para que as doenças sejam mitigadas, e não para que a saúde seja promovida. O ser humano foi subdividido. A prática médica não é mais integrativa — pelo contrário, especializa-se cada vez mais.
Isso corrobora para que, mesmo com boa vontade, um profissional de saúde não consiga olhar para a gestação, o parto e o puerpério como um evento fisiológico e benéfico, como é na maioria das vezes. Nesse momento tão especial, via de regra a mulher deveria ser apenas assistida, deixando seu corpo pleno e potente para agir sem necessidade de maiores intervenções. É isso o que estimulamos todo ano no Simpósio Internacional de Assistência ao Parto, o Siaparto.
Fonte: Saúde Abril.
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